Busco neste trabalho analisar a reurbanização do Catumbi, bairro localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, entre os anos 1963 e 1984, ou seja, entre a conclusão das obras do Túnel Santa Bárbara e a construção do Sambódromo na rua Marquês de Sapucaí. Tomo como objetivo deste texto compreender quais fatores levaram o antigo bairro do Catumbi a sofrer um intenso processo de reurbanização, marcado, sobretudo, pela demolição maciça de seus antigos imóveis e que, por conseguinte, provocou um esvaziamento de moradores no bairro. Minha aposta é que esse processo é decorrente da adoção de uma postura de sucessivos governadores do antigo estado da Guanabara em prol da integração rodoviária entre as Zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro. Assim, busco entender os processos sociais e políticos que transformaram os tradicionais sobrados do Catumbi e seus moradores em um obstáculo para o projeto de integração urbana e, indo além, do “progresso” da cidade-estado da Guanabara. Para além, também intenciono compreender como disputas e negociações, entre diversos atores e instituições sociais, pelos futuros urbanísticos do bairro, entre as décadas de 1960 e 1980, definiram a reurbanização da região, isto é, como conflitos e negociações, entre diversos atores e instituições, vão produzindo espaço.
Com a inauguração do túnel, o bairro do Catumbi passou a ser um dos principais pontos de conexão entre a Zona Sul e a Zona Norte da cidade, com a vantagem de ser um trajeto que desviava do intenso trânsito de veículos no bairro do Centro, no Rio de Janeiro. Assim, a partir de 1963, o Catumbi assumiu uma posição estratégica quanto à mobilidade urbana da cidade, visto que era um eixo de conexão que permitia o fluxo tanto de mercadoria quanto de trabalhadores da Zona Norte à Zona Sul de forma mais rápida. Diante disso, junto com o túnel, intensificam-se os debates públicos em torno dos futuros urbanísticos do antigo bairro residencial, com intuito de repensar sua função nas grandes dinâmicas da cidade-estado da Guanabara.No entanto, o projeto de 1947, que previa oferecer uma rota para o, cada vez mais crescente, tráfego de veículos entre a Zona Norte e Sul cariocas, já se encontrava desatualizado, em 1963, perante a intensa frota de carros que circulavam nas ruas do Rio, número, este, também em plena expansão. Com o túnel, nos horários de maior movimento, passaram a trafegar, pelas estreitas e coloniais ruas do Catumbi, uma média de 4 mil automóveis e, com isso, também passaram a ocupar as ruas do tradicional bairro muitos engarrafamentos.
Se por um lado, o trânsito tomou as principais ruas do pacato Catumbi, por outro, junto com os carros, também chegaram à região água encanada, esgoto e asfalto, outrora artigos escassos nas ruas do antigo bairro. De antigo bairro das enchentes, o qual os fotógrafos corriam para fotografar o drama das ruas alagadas nos dias de chuvas fortes, com a canalização do rio Papa-couve, que corta o vale do Catumbi, promovida pelo governo do estado da Guanabara, o bairro chegou a resistir bem, inclusive, a Grande Enchente de 1966, lida como a maior da história da cidade. O clima entre os moradores do Catumbi, no início dos anos 1960, era, em geral, de crescente entusiasmo, pois, se ao longo do início do século XX, o antigo bairro nobre habitasse, em grande parte, o esquecimento na memória dos governantes, com o túnel, o bairro do Catumbi retornava a ser pauta das políticas públicas, sobretudo, de saneamento básico. No entanto, a alegria dos moradores quanto às reformas infraestruturais durou tanto quanto um carnaval, e, em 1966, teve sua quarta-feira cinzas anunciada pelo governo Negrão de Lima. Toda a atenção que voltava-se ao pequeno bairro tornou-se, por fim, um algoz do Catumbi, de seus velhos sobrados e suas tradicionais conversas nas esquinas e botequins.
Em 1966, o recém-eleito governador do estado da Guanabara, Negrão de Lima, teve que encarar a missão de assumir o governo de uma cidade flagelada pelas fortes chuvas do verão de 1966. A Grande Enchente, como foi batizado os sucessivos 5 dias de fortes chuvas, que inundaram a cidade do Rio, em janeiro daquele ano, provocaram estragos por toda a cidade, desde ruas alagadas a deslizamentos de terra, deixando centenas de desabrigados, para além de mortos. No 16 de janeiro de 1966, após 5 dias de dilúvio, os cariocas amanheceram em uma cidade lameada e alagada, cidade esta que ainda tentava se reerguer da crise econômica e simbólica instaurada com a transferência da capital federal para Brasília. Neste contexto de crises, Negrão de Lima, apesar de opositor político a Carlos Lacerda, decidiu por dar continuidade às reformas infraestruturais, promovidas por seu antecessor, que buscavam requalificar a cidade do Rio de Janeiro, após a perda do status de capital federal (Alves, 2020).
Lacerda ambicionava melhorar a integração e circulação da cidade do Rio de Janeiro a partir da construção de grandes vias expressas, túneis e avenidas. A aposta na integração rodoviária, tanto estadual quanto interestadual, intencionava criar, na cidade do Rio, zonas mais atrativas para a instalação de grandes indústrias, por exemplo, no antigo bairro rural de Santa Cruz, localizado nos limites estaduais da Zona Oeste da Guanabara, como também novas áreas residenciais, como a Barra da Tijuca e os demais bairros da Baixada de Jacarepaguá. Durante o seu mandato, Carlos Lacerda encomendou um plano de reformulação urbana para a cidade do Rio de Janeiro, que foi concebido pelo famoso arquiteto grego, Constantino Doxiadis. Conhecido por Plano Doxiadis ou Plano Policromático, o projeto englobava diversas questões urbanas, mas ficou notório principalmente por suas propostas de erguer na cidade do Rio de Janeiro 6 vias expressas, todas nomeadas com nome de cor. O plano nunca foi implementado em sua totalidade, mas alguns governos posteriores se apropriaram do projeto e executaram algumas de suas propostas.
Ao que diz respeito ao Catumbi, o governo Negrão de Lima (1965-1971) anunciou, ainda em 1966, o novo Plano Diretor de Renovação Urbana da Cidade Nova, que previa a construção da Linha Lilás, uma das 6 vias expressas previstas por Doxiadis, que conectaria o bairro do Santo Cristo, próximo a zona portuária, a Botafogo, na Zona Sul carioca, passando pelo Túnel Santa Bárbara. Essa obra junta-se ao projeto, também de 1966, da gestão estadual de Negrão de Lima em construir um Arco Rodoviário na cidade do Rio de Janeiro. Tanto o Túnel Santa Bárbara quanto a Linha Lilás não iriam integrar o Arco, todavia, suas obras dialogavam com os projetos estaduais e nacionais, das décadas de 1960 e 1970, que apostavam na integração rodoviária como motor para o desenvolvimento econômico do país e das cidades (Alves, 2020).
Para além disso, em conjunto a via expressa, cuja parte do Catumbi chamaria-se Elevado Trinta e Um de Março, o novo Plano Diretor também previa uma profunda reurbanização do bairro, propondo aproveitar a sua posição estratégica para torná-lo mais atrativo tanto para grandes empresas instalarem, ali, suas sedes administrativas, quanto a construção de condomínios residenciais voltados, sobretudo, para as classes médias. Ademais, como afirmou o arquiteto Eiter Roberto Nogueira de Sá, chefe da Superintendência Executiva de Projetos Especiais da Secretaria de Obras do estado da Guanabara, ao Jornal do Brasil, o Catumbi - aos olhos dos administradores, engenheiros, arquitetos do Estado - desfrutava de uma posição privilegiada na geografia da cidade do Rio de Janeiro, em termos de mobilidade urbana. Ademais, o bairro já era, antes mesmo do túnel, próximo ao centro comercial e administrativo da cidade, do porto, da linha férrea e de algumas principais vias rodoviárias estaduais, como a Avenida Brasil e Avenida Presidente Vargas. O projeto de requalificação do Catumbi proposto pelo estado da Guanabara previa que os tradicionais sobrados, com seus azulejos nas fachadas e reservados quintais ao fundo, deveriam ceder lugar a novos edifícios residenciais, com até 17 andares, situados em ruas sem saída, que seriam transformadas em playgrounds, modelo este semelhante ao de Selva de Pedra, no Leblon. Isto também se alinhava à construção do novo Centro Administrativo Municipal, no bairro vizinho ao Catumbi, a Cidade Nova. Ademais, os condomínios teriam como público alvo justamente os funcionários públicos da Guanabara, que passariam a trabalhar no novo prédio na Cidade Nova.
Para mais, o Governo do Estado afirmava, a partir de pareceres técnicos da Secretaria de Obras, que boa parte dos antigos sobrados se encontravam deteriorados ou mesmo em ruínas e, portanto, a demolição se justificaria a fim de requalificar e reocupar uma área urbana já provida de boas infraestruturas de mobilidade urbana, mas abandonada. Soma-se isso à crescente necessidade, apontada pelo estado da Guanabara, de garantir habitações às classes médias que fossem próximas ao seu trabalho, o que além de almejar evitar longos deslocamentos - e trânsito nas principais vias da cidade - também previa melhorar a qualidade de vida desses cariocas. O Catumbi era, portanto, posto como uma região virtuosa para sofrer esse radical processo de reurbanização que, a princípio, não só demoliria quase todos imóveis do bairro, mas também provocaria uma quase total substituição de seus moradores, visto que o bairro era, até então, habitado, em sua grande maioria, por moradores das classes médias baixas e pobres. Aliás, segundo dados coletados pela Associação de Moradores, fornecidos ao JB, a maior parte das famílias viviam com entre 2 a 3 salários mínimos, no final da década de 1970.
Apesar do projeto arrasa-quarteirão, os arquitetos, engenheiros e urbanistas do CEPE-1 (Comissão Executiva de Projetos Específicos) e da Sursan (Secretaria de Urbanização e Saneamento) esqueceram de calcular em seus planos e maquetes os efeitos da insatisfação dos moradores do Catumbi quanto ao bota-abaixo de seu bairro. No dia 21 de janeiro de 1967, após o anúncio das demolições, quase todo Catumbi se cobriu em faixas de protesto, sobretudo, contra as desocupações e contra os valores baixos das indenizações.
Naquele momento o bairro já estava coberto de cartazes de uma campanha que durou anos: manifestações de rua, concentrações na Assembléia Legislativa, a edição de um jornalzinho, O Catumbi, levantamentos socioeconômicos e até contatos com um advogado de renome, precisamente Sobral Pinto. O movimento dos moradores sustentava basicamente: o Estado proprietário de 9% dos terrenos locais, não tinha necessidade de retirar ninguém do bairro; os que lá residiam teriam prioridade na aquisição ou locação dos apartamentos construídos.(Jornal do Brasil, 06/06/1977)
A partir de então, iniciou-se um conflito entre os moradores do Catumbi e os governos da cidade-estado da Guanabara que se arrastaria por mais de 15 anos. O Estado da Guanabara nunca negou a reivindicação dos moradores, ao mesmo tempo que também nunca afirmou ou apresentou um projeto de reassentamento dos moradores removidos na própria região.
Diante dos protestos, o Estado da Guanabara passou a assumir uma postura menos agressiva e tentava, aos poucos, demolir os imóveis, ao invés de tentar colocar abaixo, de uma vez só, todo o bairro. Diante da resistência, dos protestos e também de negociações entre moradores e o Estado, o projeto original, que previa a demolição de todos os imóveis, foi sofrendo alterações. A princípio, o viaduto Trinta e Um de Março deveria passar, no bairro, pelas ruas Marquês de Sapucaí e Catumbi. No entanto, com o tempo, o projeto do elevado foi se deslocando, cada vez mais, para os sopé do Morro de Santa Teresa, preservando a rua Catumbi. Por fim, este foi o traçado final do Viaduto Trinta e Um de Março, ocupando a fronteira do bairro do Catumbi com Santa Teresa. No entanto, os moradores só teriam uma garantia legal da preservação do bairro em 1980, após o fim da cidade-estado da Guanabara, que foi integrada ao estado do Rio de Janeiro em 1975. Até o início da década de 1980, apesar de contida algumas partes do bairro, as remoções continuaram.
A Prefeitura, atualmente encarregada das demolições, optou pelo trabalho lento e gradual. A associação dos moradores deixou de cobrar mensalidade, já não circula mais o jornal O Catumbi. Mas, a cada nova casa que cai, a cada nova cratera que se abre, o povo ainda se reúne para ver. Assim caíram toda a Rua Doutor Lagden e as ruas vizinhas ao novo túnel Martim de Sá, enquanto todo o lado direito do Largo do Catumbi virou um monte de destroços, nos quais não há lugar nem para pendurar a placa que lhe dava o nome, precariamente atada a um poste, de cabeça para baixo. (Jornal do Brasil, 06/07/1977)
Em 1980, a, então, Prefeitura do Rio de Janeiro sancionou um novo Plano Diretor, que passou a pensar a região atendendo algumas demandas dos moradores e colocando um ponto final no processo de demolir todos os antigos imóveis do bairro. Isso só foi possível devido aos protestos dos moradores nas ruas do bairro e a mobilização jurídica por parte deles, a partir de um trabalho em conjunto das associações de moradores do Catumbi e bairros vizinhos, como Cidade Nova e Estácio. A Lei de 14 de março de 1980 previa a utilização da rua Marquês de Sapucaí para a reurbanização da área, com a construção de prédios residenciais e mistos, escolas de 1° e 2° graus, creches e áreas de lazer. Ademais, todo o bairro do Catumbi, com um número de 20 mil crianças, segundo o JB, contava apenas com uma única escola pública, a Escola Estados Unidos. Por mais que, em 1983, o bairro tenha reenfrentado novamente mais um processo de remoção e demolição, com a construção do Sambódromo, já havia repertório, inclusive, jurídico para os moradores não só contestarem a obra como também demandarem suas reivindicações em contraproposta ao que lhe foi apresentado pela Prefeitura e Governo do Estado do Rio de Janeiro. Isso se concretizou no fato de a Passarela do Samba conter, embaixo de suas arquibancadas, um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública), por exemplo.