Escolas negras do Rio de Janeiro Imperial

Author: Higor Figueira Ferreira

Uma breve espiada no relógio revelava que já estava quase no horário da aula. Carregando consigo alguns materiais, o aluno apressa um pouco mais o passo. “Não quero chegar atrasado”, pensa ele enquanto vai costurando caminho em meio às pessoas que tranquilamente andam pelas calçadas das ruas situadas nas imediações da escola. 

Enquanto isso, o professor vai se acomodando na sala. Na sua mente ele organiza as últimas ideias e o modo como pretende abordar o conteúdo destinado àquele dia. Nesse meio tempo os estudantes vão chegando. Um a um eles se assentam nas suas carteiras entre risos, cumprimentos e histórias do final de semana. Rapidamente o antes predominante silêncio, próprio da sala vazia, é substituído por agito. O professor aproveita o clima e estabelece uma série de interações com os estudantes. Em meio à conversa ouve-se uma batida na porta. É o último estudante que ainda faltava. Aquele mesmo que há pouco apressava o passo para tentar chegar a tempo do início da aula. “Mestre, posso entrar?”, pergunta ele respeitosamente e confiante da anuência do professor. O professor confirma com a cabeça e aponta o assento livre ao qual ele deveria se dirigir. Enquanto o aluno se acomoda o professor dá uma última olhada no relógio e percebe que já era hora de começar a lição do dia. 

A cena anteriormente narrada parece completamente comum, ordinária, nada muito diferente daquilo que poderíamos ver hoje em dia, não é mesmo? Imagine, no entanto, se essa mesma situação se passasse no século XIX e que o professor em questão fosse uma pessoa negra, enquanto todos os alunos fossem, tal como ele, igualmente negros e, em alguns casos, até mesmo filhos de escravos. Tal descrição muda totalmente a nossa percepção, colocando-nos diante de um cenário, a princípio, inimaginável.

O acesso à educação para escravos, libertos e livres de cor

A despeito dos cerceamentos materiais e simbólicos próprios às sociedades escravistas, as populações negras residentes nas Américas procuraram a seu modo se organizar em favor da consecução dos seus objetivos e interesses mais imediatos.

No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, isso não foi diferente. Escravos, libertos e livres de cor estiveram sempre envolvidos na luta que é a sobrevivência e a conquista da felicidade, o que não por raras vezes era correlata à liberdade jurídica e simbólica, dimensão geralmente associada à ideia de ter a oportunidade de realizar tudo aquilo que é restrito aos segmentos livres e menos estigmatizados pela sua cor.

Quanto a este aspecto, um dos elementos que chamam a atenção é o direito ao ensino. Até o ano de 1879 escravos não podiam frequentar as escolas, ao passo que livres e libertos, embora não encontrassme objeção formal a estarem presentes nas escolas, se viam não por raras vezes obrigados a conviver com tensões de ordem socioracial nos ambientes de ensino em escolas cujos currículos não davam grande importância às questões desta natureza.

No entanto, a despeito de todas essas questões, os estudos das últimas décadas tem sido profícuos em demonstrar que escravos, libertos e livres não só conseguiram acesso ao ensino, como também muitas vezes o fizeram por meio de estratégias de auto-organização. 

 

A escola de Pretextato dos Passos e Silva

No ano de 1853 Pretextato dos Passos e Silva abriu em sua casa uma escola particular primária para meninos. À época nenhuma dessas coisas era de se estranhar. Abrir uma escola em domicílio era algo bastante corriqueiro e atender exclusivamente a apenas um público sexual específico - ou meninos, ou meninas - era de fato o mais habitual.

Em termos práticos a escola parecia ser mais uma das tantas iniciativas educacional situadas  freguesias centrais do Rio de Janeiro. Ou seja, em um primeiro momento não havia ali nada de especial. Ela era composta por um professor que ensinava, bem como por alunos que aprendiam deditamente as lições de leitura, escrita, matemática, além de doutrina católica.

No entanto, embora pudesse parecer ordinária, ela guardava algo de especial: ela era uma escola formada exclusivamente por meninos pretos e pardos, sendo o próprio Pretextato um professor identificado como preto. 

Uma escola como qualquer outra?

Embora a escola de Pretextato fosse mais uma no meio de tantas outras, ela não deve ser compreendida apenas como mais uma escola qualquer. Afinal, diferentemente das demais, ela era forjada por um aspecto bastante peculiar, uma vez que toda a sua comunidade escolar era formada por pessoas pretas e pardas. 

 

Localização da escola

A escola estava localizada na rua da Alfândega, 313, freguesia de Santíssimo Sacramento, atualmente área central do Rio de Janeiro. 

Conforme é possível perceber no mapa, ela estava situada em uma região em que já haviam sido estabelecidas algumas escolas públicas. Afora isso, havia ali também muitas outras iniciativas de caráter privado, as quais não estão indicadas no mapa. 

Sob esta ótica, portanto, a escola de Pretextato era apenas mais uma dentre tantas outras escolas que estavam em pleno funcionamento na referida freguesia. 

 

O perfil populacional da freguesia de Sacramento

Segundo os dados do censo de 1849, havia 266.466 moradores na cidade do Rio de Janeiro, estando esta população distribuída em 15 freguesias – das quais 8 urbanas e 7 rurais –, além de 1 curato. Deste total, 41.856 pessoas residiam em Santíssimo Sacramento, o que a fazia ser a freguesia mais populosa, recebendo 15% de todos os habitantes do município. 

Discriminando pelo critério de condição jurídica, seriam 25.435 livres, 2.206 libertos e 14.215 escravos. Analisando frente às outras freguesias, a quantidade de escravos e libertos – ou seja, a quantidade somada daqueles que tiveram algum laço umbilical mais imediato com o mundo da escravidão – era bastante significativa, perfazendo um total de aproximadamente 40% de toda a população situada nesta área. Sendo assim, considerando os indícios ora presentes, é possível inferir que uma boa parte das famílias envolvidas com a iniciativa escolar movida juntamente ao professor Pretextato estava inserida neste segmento cuja representatividade local era elevada. 


 

 

Um espaço de acolhimento às crianças de cor

Ao justificar a abertura da escola junto ao poder público, Pretextato acabou descrevendo a existência de certos obstáculos com os quais os meninos pretos e pardos tiveram que lidar ao tentar obter instrução escolar nas demais instituições da região.

Neste sentido, o professor ressaltava a carga de animosidade por eles enfrentada cotidianamente, fruto justamente das tensões constituídas em torno da questão da cor. Segundo os relatos fornecidos por ele e pelos pais, isto fazia com que os meninos se sentissem coagidos, o que os atrapalhava no momento de assimilar o conteúdo ministrado pelos antigos professores que, por sua vez, pareciam não se comover, sendo complacentes com o caso.

Ou seja, foi diante da insustentabilidade da situação que os pais recorreram a Pretextato, entendendo que com ele os seus filhos poderiam gozar de uma experiência escolar melhor sucedida, sobretudo por conta da existência de uma identidade comum entre ele e os meninos, tendo em vista o fato do próprio ser autodeclarado preto.

O que aconteceu com Pretextato e a escola?

As últimas indicações do funcionamento da escola datam do ano de 1873, momento em que Pretextato havia sido despejado por falta de pagamento à Santa Casa de Misericórdia. Não se sabe se após isso ele seguiu lecionando.

Pretextato viveria ainda pouco mais de uma década após este eventom, vindo a falecer no ano de 1886. À ocasião ele já era um sexagenário (é sabido que ele nascera em 1820 ou 1821).

O anúncio da sua morte fora feito na edição de 3 de março de 1886 do jornal Gazeta de Notícias. Nela, os irmãos da Ordem 3ª de Nossa Senhora das Mercês eram convidados a participar de uma missa em favor de sua alma. Segue o trecho extraído do referido periódico: 

"V. O. 3ª de Nossa Senhora das Mercês, ereta na Igreja do Parto

De ordem do caríssimo irmão comendador e definitório, convido todos os irmãos e irmãs da Ordem, bem assim os parentes e amigos de nossos finados irmãos, ex-sindico Manuel Candido Nunes, e ex-secretário Pretextato dos Passos e Silva, a assistirem as missas que em sufrágio de suas almas serão celebradas hoje, 3 do corrente, pelas 8 e 1/2 horas da manhã, na Igreja do Parto. 

Secretaria da Ordem. 3 de março de 1886. – O secretário, F Ramos."

 

 

A notícia não reforça o tempo póstumo da missa, o que não permite uma afirmação categórica de quando ocorreu o falecimento. Apesar disso, o anúncio não deixou de ser importante por uma série de motivos. O primeiro deles é que agora há uma de quais devem ser os limites cronológicos das fontes as quais ainda podemos consultar no sentido de descobrir mais sobre sua pessoa e ação no magistério. Para além disso, diante do exposto é possível saber que outras conexões mais ele estabelecera nos anos seguintes, haja vista o fato de que agora há conhecimento de que ele fora secretário da Ordem 3ª de Nossa Senhora das Mercês. Restam, contudo, muitas perguntas a serem respondidas: Após o encerramento da sua escola na rua da Alfândega, Pretextato voltou a lecionar? Como era atuação de Pretextato na Sociedade Mercenaria Beneficente e na Ordem? Por quanto tempo atuou em ambas? As suas aulas eram gratuitas? De que modo a instrução ocupou um lugar não só na sua vida, mas na de seus alunos de modo a lhes permitir maior trânsito social?

Ainda que as novas informações coletadas ajudem a compor diferentes parcelas do mosaico de sua vida, restam muitos caminhos obscuros – e talvez extremamente fechados – pelos quais valha embrenhar de modo a dar maior concretude a esta figura instigante que ajuda a reforçar a percepção de que a luta contra a escravidão e seu legado foi, antes de tudo, uma militância amplamente difundida no seio da sociedade brasileira, sendo assumida por figuras que, ainda que em algum nível menos conhecidas, foram fundamentais para a composição de forças em favor da causa abolicionista.

 

O curso noturno de Israel Antônio Soares

Israel Antônio Soares foi uma importante figura do  movimento abolicionista na cidade do Rio de Janeiro.

Filho de pais africanos, e nascido na condição de cativo, Israel experimentou na prática as dificuldades que se impunham sobre a vida dos cativos. 

A despeito disso, sua trajetória de lutas e articulações lhe possibilitou obter crescimento, projeção e acesso às letras. Algo que não apenas lhe ampliou horizontes, como lhe possibilitou abrir um curso noturno para lecionar junto a escravos e libertos residentes na cidade do Rio de Janeiro.

Infância cativa

Tendo sido concebido na condição de cativo, sua mãe almejou libertá-lo, projeto que acabou não se concretizando por conta de uma decisão específica por ela tomada. Como Israel tinha uma irmã também escrava, Luíza julgou mais pertinente garantir primeiramente a liberdade da filha, para só então planejar a libertação de Israel. Para tanto, alguns anos depois, mais precisamente em 1856, Luíza desembolsou a quantia de um conto de réis, concretizando o negócio em favor da alforria da jovem. A decisão gerou algum entrevero familiar, uma vez que o padrasto dos dois entendia que era Israel quem deveria ter sido o primeiro libertado, acionando para isto o argumento de que o menino tinha a pele mais escura, o que conferia caráter mais emergencial ao caso. Contudo, o próprio Israel veio a reconhecer que a decisão de sua mãe havia sido a mais acertada, posto que a alforria da irmã significou também a liberdade do seu ventre, garantindo que nenhum dos seus futuros filhos precisasse nascer e crescer sob a condição cativa. Ou seja, o plano de garantir a primazia à sua irmã era dotado de maior caráter estratégico no sentido da ampliação das chances de liberdade para a família como um todo.   

Uma vida muito esquerda...

A sequência do planejamento, contudo, não se mostrou tão bem-sucedida. A despeito dos esforços, Luíza não conseguiu livrar o menino da escravidão, assim como houvera feito com a sua irmã. As suas expectativas de amealhar o dinheiro necessário a este propósito no mercado de ganho não se concretizaram. Por esta razão, coube a Israel vivenciar as sujeições e agruras do cativeiro, sendo levado a compreender desde muito cedo “que era muito esquerda a posição de escravo”

Os jornais no canto da cozinha

De todo modo, mesmo diante das restrições, Israel também conseguiu encontrar meios para aprender a ler e a escrever sem que para isso fosse necessário frequentar escolas. Quanto a isto, ele se limitou a afirmar que havia aprendido a “ler em jornais velhos no canto da cozinha”. Ainda que pouco afeito aos detalhes que constituíram este processo de aprendizagem, é de se imaginar que a sua instrução tenha sido marcada por uma boa dose informalidade, mesclando elementos de autodidatismo e contribuições de terceiros. 

 

 

O amigo da botica

Neste sentido, vale destacar que ele próprio fornece a indicação nominal de um sujeito que – embora não tenha ocupado exatamente o posto de professor – notoriamente assumiu algum protagonismo educacional na sua vida: o farmacêutico Marcelino Ignacio de Alvarenga Rosa. 

Segundo referência presente no Almanaque Laemmert de 1863, Marcelino era proprietário de uma botica que funcionava na Praia de São Cristóvão 55, o que fazia com que o seu estabelecimento estivesse bem próximo de onde Israel passou a residir a partir do ano de 1857, momento em que completara 14 anos de idade. Do número 41, onde à época morava, ao número 55, endereço da farmácia, a distância era curta, provavelmente de poucos passos, o que permitiu não só que as suas trajetórias se cruzassem, mas que estabelecessem uma relação que os impactou em um nível muito profundo. Nas palavras de Israel: 

“a esse cidadão [Marcelino] devo o pouco conhecimento que tenho da vida. Foi com ele que acompanhei toda a questão do Ventre Livre e era com sofreguidão que lia os discursos de João Mendes, Pinto de Campos, Pereira Franco, Junqueira e do sublime Rio Branco” (SENA, 1983, p. 141). 

 

O curso noturno de Israel Soares

Anos mais adiante ele inverteria os papéis. De aprendiz a mestre: Israel havia decidido compartilhar os seus saberes com aqueles que não eram instruídos. Tendo transcorrido certo tempo desde o falecimento de sua mãe, ele tomou a iniciativa de formar um curso noturno no mesmo endereço em que ela outrora havia estabelecido uma casa de quitandeira: na rua Almirante Mariatte, que mais tarde teve o seu nome alterado para rua S. Luiz Durão, no número 19. Israel, em sua exposição a este respeito, chega a listar para Ernesto Sena os nomes de algumas das pessoas que compuseram o seu alunado: 

“Entre os meus alunos posso citar alguns: Abel da Trindade, Pedro Gomes, Marcolino Lima, Justino Barbosa, Joaquim Vicente, Venâncio Rosa, Estanisláu, Fausto Dias, Vitor de Souza, Tomé Pedro de Souza, Martinha Benedita, Antônia, Eugênia, Rosa, Vitória e Joana, escravos e ex-escravos. Entre estes alguns há que aprenderam depois mais alguma coisa e hoje governam sua vida muito bem.” (SENA, 1983, p. 143) 

 

O poder replicador da educação

É interessante notar como o efeito replicador do saber pode ser especialmente percebido nas teias constituídas no âmbito familiar. Sob este viés, a própria concepção de professor/mestre precisa ser percebida de uma maneira mais dilatada e flexível, posto que passa a ser fundamentalmente desprendida da ideia de um trabalho formal instituído no campo do magistério e predominantemente forjada pelas lógicas da convivência cotidiana. Sendo assim, indivíduos pertencentes às gerações mais velhas tendem – desde que social e materialmente presentes – a exercer um papel instrutivo fundamental junto aos seus descendentes imediatos, o que envolve tanto o compartilhamento de saberes historicamente acumulados, quanto o incentivo à construção de vínculos com conhecimentos de diferentes naturezas que podem servir ao propósito de ampliação ou delimitação das projeções e horizontes pessoais futuros.

Tratando-se especificamente do caso de Israel Soares, é possível dizer que os efeitos deste processo relacional foram notoriamente percebidos na vida de seus filhos. Sob a influência de Israel – assim como de Antônia Soares, sua mãe – ambos se tornaram indivíduos socialmente engajados, além de detentores de saberes e potencialidades que os puseram em evidência nas suas respectivas áreas de atuação.

Neste sentido, vale destacar que Israel conseguiu formar um dos filhos - Israel Junior - como farmacêutico e médico, um feito bastante significativo para uma família oriunda da realidade escravocrata. 

RABISCOS FINAIS

Não há dúvidas de que figuras como Pretextato e Israel exerceram, cada um a seu modo e tempo, papéis públicos de considerável relevância, promovendo ensino e alargando os horizontes de escravos, libertos e pessoas de cor residentes na Corte ao longo da última metade do oitocentos. 

No entanto, é preciso destacar que estes dois personagens não devem ser tomados como exemplos de excepcionalidade. Com efeito, é muito provável que novas investigações permitam a localização de muitos outros indivíduos igualmente emblemáticos – e inspiradores – que propuseram ações educativas favoráveis à comunidade negra diante de cenários de restrições e embates.