Narrativa construída a partir do texto "Rios Modernos" em co-autoria com Bruno Capilé, produzido por Andrea Jakobson Estudio,
Os rios percorriam as cidades do Rio de Janeiro cumprindo suas funções citadinas na Corte do Império. Veio Deodoro da Fonseca, veio a República, e os rios, impávidos, continuaram seus cursos. Afinal, o que faziam os rios urbanos no século XX?
Os rios de fins do século XIX eram muitos e vários. Havia os garbosos e belos como o Rio Carioca, que descia o bairro das nobres mansões no Cosme Velho e Laranjeiras. Ali fornecia água para a vizinhança, alimentava os animais, hidratava jardins e hortas e pomares. Havia rios proletários, cuja força de trabalho era capturada pelas fábricas e curtumes, que carregavam efluentes e resíduos até a Baía de Guanabara. Havia rios longos, que traziam mercadorias e matéria orgânica de áreas distantes e havia os curtos, humildes, que serpenteavam pela cidade, crescendo em enchentes e minguando em secas.
Os rios cariocas do século XX são máquinas orgânicas. Pertencem ao mundo da natureza, com suas águas, margens e ecossistemas, e são também resultado de ação e intervenção humana, nos seus novos cursos e funções industriais.
Capilé, Bruno e Sedrez, Lise. Os Modernos Rios Cariocas. In: Kury, L.; Sedrez, L.; Capilé, B, e Motta, M. Os Rios do Rio. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson Estúdio, 2020.
O Canal do Mangue surge no início do século XX sobre os restos do antigo manguezal de São Diogo, que cobria toda a área que vai desde a Cidade Nova até a Praça da Bandeira. Desde as primeiras décadas do século XIX, porém, já uma série de aterros e obras hidráulicas, como o chamado Caminho do Aterrado, confinavam o manguezal, até sua transformação definitiva quase cem anos depois. As águas dos rios Papa Couve, Comprido, Trapicheiros, Maracanã e Joana continuam regando fielmente a larga região, como faziam desde os tempos do manguezal.
Sobre o manguezal do São Diogo, surge o Matadouro de São Cristóvão (1853), depois Praça do Matadouro, e finalmente a conhecida Praça da Bandeira.
Nas áreas mais populosas da cidade, os rios já sofriam processos drásticos de aterramento, canalização e todo o tipo de engenharia, desde o início do século XX, como o tradicional rio Carioca. Já em áreas de urbanização mais rarefeita, as várzeas domesticadas pela canalização deram lugar a novas vias urbanas conectando a cidade - como foi a Avenida Maracanã, inaugurada em 1922.
Na proximidade da foz no Canal do Mangue, os rios Maracanã, Joana, Comprido e Trapicheiros passaram por um amplo processo de retilinização no início do século XX. Mas as várzeas ainda se mantiveram por décadas em terra batida, basicamente inalteradas, sem que o município tivesse grande interesse em cimentá-las.
Aqueles aterros iniciais na década de 1840 na Praça da Bandeira e as dramáticas transformações fluviais do início do século XX esconderam os rios que uma vez ali corriam. Hoje, eles só são lembrados quando suas águas brotam durante as chuvas intensas – e dão origem às famosas enchentes da Praça da Bandeira, quase que com ironia, ou talvez uma dose de rebeldia.
A dinâmica do crescimento urbano permitiu que as várzeas das áreas menos populosas permanecessem pouco alteradas, algo como vácuos de “modernidade”. Este hiato na avalanche progressista não duraria muito. Concreto e asfalto estavam em expansão constante, como vemos nas obras de continuação de retilinização do rio Comprido na Avenida Paulo de Frontin.
Sob a Rua Conde de Baependi, flui o rio carioca por excelência. Aterrado e sufocado, mas flui.
Na primeira metade do século XX, as políticas de saneamento e canalização dos rios levaram à criação de avenidas nas margens dos rios, como a Avenida Rio Joana (atual Av. Maxwell), e a Avenida Trapicheiros (atual Avenida Heitor Beltrão).
Nas margens do rio Comprido se instalou um subúrbio de gente abastada em casarões requintados. As obras de retilinização deram um ar de modernidade ao bairro, atraindo curiosos para apreciar o rio. O imponente morro do Corcovado se ergue ao fundo, ainda sem a estátua do Cristo Redentor, construída em 1931.
Os meandros do rio Meriti marcavam os limites entre o norte do Rio de Janeiro e os municípios da Baixada Fluminense. Mesmo na década de 1940, o rio ainda conservava o traçado que acolhera os povos indígenas, séculos antes. Nas partes mais afastadas do centro urbano, os rios demoraram a ser transformados.