O interesse em montar uma narrativa acerca do cotidiano da antiga rua dos Ourives é fruto da investigação a respeito das intervenções urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro no período do Estado Novo (1937-1945). Nesse âmbito, a abertura da Avenida Presidente Vargas na década de 1940 demandou a supressão de parte dessa rua, guardando semelhança com o ocorrido na abertura da Avenida Central, no início do século XX, que já havia entrecortado o logradouro.
Pesquisa e texto: Naylor Vilas Boas e Francesca Martinelli | LAURD/PROURB/FAU/UFRJ
Antigo Caminho da Conceição para o Parto, o nome “dos Ourives” remete a meados do século XVIII, época em que foi destinada pelo governador Gomes Freire de Andrada (conde de Bobadella) a abrigar toda e qualquer a atividade ligada à ourivesaria na cidade, a fim de facilitar a arrecadação do quinto (OURIVES, 2021).
O crescimento da ourivesaria no Brasil é seguido por diversas tentativas de fiscalização e controle dessa atividade, que culminam na Carta Régia de 30 de Julho de 1766.
A Carta proíbe o exercício dos ourives, a fim de conter o contrabando e consequentes desvios que estariam prejudicando a arrecadação ao Real Erário (OURIVESARIA, 2021).
O evento da proibição foi relembrado cem anos depois por Joaquim Manoel Macedo em seu romance As mulheres de Mantilha:
"É provável que também uma sinistra medida tomada pelo governo de Lisboa e executada pelo conde da Cunha concorresse muito para o desgosto profundo que causou a sua administração.
Ou porque se quisesse prevenir o muito descaminho do ouro em pó e em folhetas, ou porque, como parece mais verdadeiro, se resolvesse sob aquele pretexto sacrificar os interesses legítimos dos colonos aos interesses egoístas dos ourives da metrópole, a Carta Régia de 30 de julho de 1766 mandou extinguir o ofício de ourives nas capitanias de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, e foi o conde da Cunha o infeliz executor desse assassinato da ourivesaria que principalmente no Rio de Janeiro tinha chegado a um grau de perfeição que excluía o concurso dos produtos
respectivos da metrópole.
A Carta Régia de 30 de julho de 1766 era a pobreza para muitos, e a iniqüidade para todos. Um castiçal de prata amassado, uma colher de prata quebrada, uma jóia de ouro precisando de conserto, deviam ou perder-se, ou ir pedir conserto a Portugal.
O governo de Lisboa sentenciara à morte a ourivesaria do Brasil [...]."(MACEDO, 1870, p. 7-8)
Apesar das determinações legais, o ofício continuaria a funcionar de forma clandestina ao longo do século XVIII (OURIVESARIA, 2021).
No ano seguinte à proibição, em 1766, a rua dos Ourives – tendo permanecido com o mesmo nome – é descrita pelo vice-rei conde da Cunha como a maior e mais populosa rua da cidade (COSTA, 1964).
A atividade só foi retomada de forma legal no início do século XIX, após a chegada da Corte portuguesa. O Alvará de 11 de Agosto de 1815 revogava a Carta Régia anteriormente expedida, permitindo aos ourives que produzissem e negociassem artefatos de ouro e prata da maneira que lhes conviesse.
Após a retomada legal do ofício, a rua dos Ourives permaneceu como referência de casas que produziam e comercializavam joias na cidade, reunindo a maior parte destes estabelecimentos.
Entre eles estava a Casa Juvanon, na qual foi mandada confeccionar "uma coroa esmaltada a verde, com 19 pedras de brilhantes" oferecida em 1852 ao dramaturgo João Caetano, por ocasião da reinauguração do Teatro de S. Pedro. A cerimônia contara com a presença do Imperador D. Pedro II (O novo Theatro..., 1930).
Entretanto já na década de 1860 Joaquim Manuel de Macedo, percorrendo as ruas do Rio, nos dá um testemunho da diminuição da atividade a qual dava nome ao logradouro:
“Eia, pois, meus companheiros de passeio, a galope! Vamos ou pela Rua do Parto [...], ou enfim, pela Rua dos Ourives, onde quase não há mais ourives.” (MACEDO, 2005, p. 372, grifos nossos).
Do período narrado por Joaquim Manuel de Macedo até o final do século XIX a atividade que nomeara a rua daria lugar a um sortimento de comércio e serviços dos mais variados tipos.
Na década de 1890 a rua dos Ourives abrigava estabelecimentos como a primeira Policlínica Geral do Rio de Janeiro, que funcionava no nº 1, junto ao Arquivo Público Nacional, até armazéns de comissários de café, que ficavam ao final da rua, no Largo de Santa Rita.
Entre o início e o fim da rua havia chapelarias, comerciantes de couros e peles, importadores dos mais variados artigos, drogarias e fabricantes de preparados medicinais, perfumarias, lojas de móveis e utensílios para a casa, clínicas médicas, estúdios fotográficos, papelarias, fornecedores de equipamentos para indústria e astronomia, lojas de música, modistas, alfaiates, comércio de artefatos funerários, lojas de brinquedos, depósitos de medicamentos, roupas, cigarros, fósforos e vinhos.
Com a rua já dotada de sobrados, as atividades de serviços funcionavam em sua maioria nos pavimentos superiores destes, onde também encontravam-se as residências.
Alguns estabelecimentos, entretanto, ainda mantinham a atividade ligada ao ouro, como a loja de Francisco de Paula Barbosa, que funcionava no número 105.
Próximo a este, no número 111, estava a Sociedade Animadora da Corporação dos Ourives, entidade criada em meados do século XIX com a finalidade de amparo mútuo, melhoramento e promoção da atividade.
Após a permanência – física e simbólica – da rua dos Ourives por quase dois séculos, a abertura da Avenida Central, no início do século XX, resultaria na supressão do trecho entre as ruas do Ouvidor e Sete de Setembro.
A cisão da rua e a consequente demolição dos edifícios que ocupavam os lotes que desapareceriam fez com que alguns estabelecimentos comerciais liquidassem seu estoque.
A cisão da rua e a consequente demolição dos edifícios que ocupavam os lotes que desapareceriam fez com que alguns estabelecimentos comerciais liquidassem seu estoque.
Além dos anúncios nos periódicos, as liquidações também eram sinalizadas nas fachadas das lojas, como esta que se daria "por motivo da reconstrucção...".
Enquanto uns fechariam em definitivo, outros planejavam se reerguer na "Grande Avenida", valendo-se da nova imagem da cidade oferecia.
Outros ainda se mudariam para as proximidades, como o joalheiro Torres Carneiro, um dos poucos ourives que ainda funcionavam na rua.
Na prática, no entanto, o descontentamento com a mudança forçada aparecia nas entrelinhas dos anúncios.
Uma charge à época das obras nos traz uma noção do caráter forçoso das reformas urbanas conduzidas por Pereira Passos.
A família, após retornar à cidade, procura por sua casa. Não só a casa desaparece, como também a de conhecidos, como o dentista da família que morava na rua dos Ourives.
Para além das charges, noticiava-se também nas colunas dos jornais o desnorteamento produzido pelo desaparecimento de pontos de referência.
As fotografias da inauguração revelam o aspecto do corte produzido pela nova avenida à rua dos Ourives.
Após a reforma urbana, comerciantes dos trechos que não foram afetados pela abertura da Avenida buscavam desfazer rumores de uma possível demolição, valendo-se da divulgação de suas fachadas intactas.
Entretanto, o trecho remanescente menor não escapou à mudança de nome. Alguns anos depois, em um gesto final de separação da Rua dos Ourives, este trecho passa a ser chamado Rodrigo Silva. O trecho maior, a oeste da Avenida, permanece com o mesmo nome.
Um novo movimento dos estabelecimentos foi o de trazer em seus anúncios também o antigo endereço, advertindo seus clientes de que ainda se tratava da mesma rua.
Nas primeiras décadas do século XX os consultórios médicos, farmácias e depósitos de medicamentos predominavam nos anúncios que faziam referência à ainda denominada rua dos Ourives.
Foram também sendo introduzidos novos comércios, a exemplo de duas casas muito próximas e que concorriam entre si na venda de artigos esportivos: a Casa Sportman (nº 25-27) e a Casa Spander (nº 29), de um antigo funcionário da primeira.
Na foto da fachada de uma delas, destaque para a venda de artigos de foot ball.
A década de 1930 vem acompanhada do fechamento das últimas casas ligadas à ourivesaria ainda em funcionamento na rua.
O desaparecimento da atividade acaba reverberando na mudança de nome do logradouro. Em 1936 o trecho ainda denominado rua dos Ourives recebe o nome de Miguel Couto, em homenagem ao médico que lá havia estabelecido seu consultório.
A mudança de nome havia sido anunciada ainda em 1934, ano de falecimento do médico.
Um poema publicado à época esforça-se para convencer os leitores de que a mudança de nome não a faria menos importante.
Em 1936 as placas que denominavam a rua dos Ourives foram substituídas por Miguel Couto.
O gesto simbólico de lembrança à memória do médico apagaria de vez a referência ao antigo ofício que havia dado nome à rua.
Apesar do novo nome, a rua Miguel Couto ainda permaneceria no imaginário da cidade como Ourives.
No texto "Contrastes da Cidade", de 1944, Severino Uchôa relata o fato:
"Pouca gente tem observado o contraste, a ironia, do batismo de certas ruas cariocas, cujos nomes estão em flagrante desacordo com o seu destino na vida heterogênea da cidade. [...] e muita gente ainda chama à Rua Miguel Couto: Rua dos Ourives." (UCHÔA, 1944).
Na década de 1940 mais uma grande intervenção urbana cortaria a antiga Rua dos Ourives. A abertura da Avenida Presidente Vargas acabaria com um quarteirão inteiro que ia da rua General Câmara à Rua de São Pedro.
Nesta última localizava-se a Igreja São Pedro dos Clérigos, que, mesmo tombada pelo ógão federal de patrimônio, não resistiu ao impulso arrasador do "progresso".
Os trechos remanescentes dessa intervenção mantiveram nome de Miguel Couto.
ALVARÁ - de 11 de Agosto de 1815. In: Collecção das Leis do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 41.
COSTA, Nelson. "O Rio através dos séculos". Correio da Manhã, 28 jun. 1964, p. 12.
"O novo theatro João Caetano". Correio da Manhã, 24 jun. 1930, p. 3.
OURIVES burlam o fisco. In: Rio: um olhar no tempo - 1565 a 2011. Portal da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
OURIVESARIA Colonial Brasileira (Verbete). In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021.
MACEDO, Joaquim Manuel de. As Mulheres de Mantilha. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1870.
______. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.
UCHÔA, Severino. "Contrastes da Cidade". Vida Doméstica, jun. 1944, p. 26.