Nesta leitura espacial e imagética do livro "Agosto", de Rubem Fonseca, vivemos um dos episódios mais dramáticos da história nacional: a crise política que levou ao suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954.
Em uma mescla de ficção e realidade, esse premiado romance da literatura brasileira nos envolve em assassinatos, encontros lascivos, corrupção e política, em um movimento incessante pela cidade do Rio de Janeiro. Siga este story map e se deixe levar pelo Rio dos anos 50, sua trama e seus personagens.
Referência bibliográfica:
FONSECA, Rubem. Agosto. Rio de Janeiro: Editora Record Altaya, 1990.
José Rubem Fonseca (1925 — 2020) foi um contista, romancista, ensaísta e roteirista brasileiro. Em 2003, venceu o Prêmio Camões, a mais prestigiada distinção literária para a língua portuguesa.
Seus romances policiais são marcados por elementos de cotidiano e oralidade, em que personagens sem escrúpulos desnudam a realidade violenta e envolvente da cidade grande. Com eles, também aprendemos sobre nossa história política, criada e recontada no tecido social de diversos espaços.
Em Agosto, a trama passa por locais de poder institucional como o Palácio do Catete e o Ministério da Guerra, segue por pontos de encontro no cotidiano dos cariocas, como o terminal de transporte “Tabuleiro da Baiana”, e chega até a mata fechada na Serra do Tinguá, entre Nova Iguaçu e Duque de Caxias.
De imediato, o primeiro assassinato dessa história envolve o comissário de polícia Alberto Mattos em uma investigação difícil, que perpassa sua vida pessoal e a vida política nacional, aproximando-o do presidente Getúlio Vargas. Em um dos bairros mais conhecidos do país, famoso pela praia e pela vida cultural e noturna:
“O porteiro da noite do edifício Deauville [Rua Nossa Sra. de Copacabana, 828 - Copacabana] ouviu o ruído dos passos furtivos descendo as escadas. Era uma hora da madrugada e o prédio estava em silêncio. [...]
No oitavo andar.
A morte se consumou numa descarga de gozo e de alívio, expelindo resíduos excrementícios e glandulares - esperma, saliva, urina, fezes. Afastou-se, com asco, do corpo sem vida sobre a cama ao sentir seu próprio corpo poluído pelas imundícies expulsas da carne agônica do outro.”
(página 7)
Na mesma noite de início de Agosto, um mau pressentimento preenchia um dos cômodos do edifício neoclássico construído em 1858 e que era, então, a sede da Presidência da República.
“O homem conhecido pelos seus inimigos como Anjo Negro entrou no pequeno elevador, que ocupou por inteiro com seu corpo volumoso, e saltou no terceiro pavimento do Palácio do Catete [Rua do Catete, 153 - Catete]. Andou cerca de dez passos no corredor em penumbra e parou em frente a uma porta. Dentro, no modesto quarto, vestido com um pijama de listas, sentado na cama com os ombros curvados, estava o homem que ele protegia, um velho insone, pensativo, alquebrado, de nome Getúlio Vargas.”
(página 8)
Na Zona Sul carioca, o bairro da Gávea passou "De área de lavouras de cana a reunião de palacetes e chácaras da nobreza, de cenário de grandes indústrias e vilas operárias a endereço residencial cada vez mais valorizado" (Millen, 2018) e, nos anos 1950, já havia alcançado notoriedade internacional graças às corridas de carro do "Circuito da Gávea" e dos eventos no Jockey Club Brasileiro. É nesse último espaço de prestígio e poder que Getúlio é vexado, uma vez mais. Será mesmo que Getúlio perdia força política?
“Como Gregório temia, o presidente foi vaiado quando o locutor do Jockey Club anunciou, pelos alto-falantes, sua chegada. O presidente fingiu não tomar conhecimento dos apupos que vinham das tribunas especiais. Das tribunas populares não veio nenhum aplauso, nenhum apoio. Então é assim que o povo trata o Doutor Getúlio?, pensou Gregório. Depois de todos os sacrifícios que fizera e fazia pelos pobres e humildes?”
(página 22)
A construção da imagem de Getúlio Vargas como "o pai dos pobres" é objeto de intensa curiosidade e de pesquisa. A queda do maior líder carismático da história nacional poderia ser outra coisa que não trágica? A exposição virtual "Saio da vida para entrar na História" - https://expo-virtual-cpdoc.fgv.br - discute como a propaganda política foi uma peça-chave para a consolidação da popularidade dos seus governos e retoma os principais acontecimentos daquele conturbado período.
O Jockey Club Brasileiro foi fundado em 1932, a partir da fusão do Derby Club e do Jockey Club. É onde membros da elite política e econômica se encontram ao longo do livro, sempre com o pretexto de atender os mais sofisticados eventos esportivos do país, principalmente o Grande Prêmio Brasil, realizado de 1933 a 2014, sempre no primeiro domingo do mês de agosto.
Como bem nota o historiador Clóvis Bulcão, "o ápice da festa se dava nas arquibancadas do Hipódromo, particularmente nas 'sociais', setor reservado aos sócios do Jockey. Em geral, a prova era disputada com a presença do presidente da República, o que já causava burburinho.”.
O mês de agosto parece bulir com acontecimentos de grande consequência e que se desenrolam rapidamente: assassinatos, corridas de cavalo, golpes e até os preparativos para a Revolução de 1930, que anos antes colocava Getúlio Vargas no centro do poder.
O Comissário Alberto Mattos e seu colega, o agente de polícia Rosalvo, são responsáveis pelo caso da morte "abre-alas" desse enredo policial. Tratava-se de Paulo Gomes Aguiar, um empresário de sucesso e bem conectado, dono da empresa Cemtex. Após colherem o depoimento da esposa da vítima, Luciana Gomes Aguiar, por quem Mattos sente uma "instintiva hostilidade", o investigador e seu ajudante vão atrás dos possíveis inimigos de Gomes Aguiar.
“‘Doutor, tenho boas novas’, disse Rosalvo, entrando na sala de Mattos.
Depois que saíra da casa de dona Laura, o comissário se despedira de Pádua e fora a uma leiteria na galeria Cruzeiro [esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Santa Luzia, no Centro], onde tomara meio litro de leite ralo. Em seguida pegara, no Taboleiro da Baiana, um bonde para ir ao distrito.
‘A gente tem que saber da vida da vítima para poder pegar o assassino, não é verdade?’, disse Rosalvo.
‘Adiante.’
‘Fui ao Colégio São Joaquim, para ver o histórico escolar do Gomes Aguiar. Evidentemente os padres não me mostraram nada, esses padres são foda. Mas eu tenho um cunhado que é bedel no São Joaquim e ele levantou a lebre… Aliás, esse meu cunhado quer fazer o curso de investigador na Escola de Polícia.’”
(página 67)
A leiteria ficava na Galeria Cruzeiro, famosa por seus bares, restaurantes e lojas, no andar térreo do Hotel Avenida, uma jóia arquitetônica construída em 1910 na Avenida Rio Branco, 156, na região central da cidade.
A galeria levava o nome de "cruzeiro" porque havia duas passagens que se entrecortavam, traçando no espaço o formato de uma cruz. A demolição do edifício do hotel aconteceu em 1957, abrindo espaço para o atual Edifício Central, o primeiro da cidade a ser erigido em estrutura metálica e, atualmente, conhecido por ser o maior polo de vendas de equipamentos eletroeletrônicos do Rio.
Em 1954, lá estava o Comissário de polícia Mattos, rendendo uma homenagem à famosa Leiteria Mineira, ainda hoje em funcionamento na Rua da Ajuda, 35, também no Centro da cidade.
Mattos era um homem mal humorado, um contumaz bebedor de leite, na esperança de aplacar o desconforto gástrico provocado por uma vida esprimida entre dois pares amorosos e o cargo mais elevado das carreiras de agente de autoridade da Polícia Civil. Mattos conecta mundos socialmente muito distantes, embora pertencetes à mesma cidade, sem pertencer bem a nenhum deles. Ele transita em xilindrós, bordéis, cinemas, salas do Senado Federal e onde mais sua investigação o levar.
O “Tabuleiro da Baiana”, onde o Comissário Mattos pega o bonde para o distrito policial, era um terminal de transporte urbano, localizado perto do Hotel Avenida, na Avenida Almirante Barroso, em frente ao Largo da Carioca. Recebeu esse nome por causa da sua cobertura retangular de concreto armado que lembrava o corriqueiro tabuleiro de quitutes usado nas vendas ambulantes pelo Centro da cidade.
Entre 1937 e 1970, quando foi demolido, o terminal marcou a paisagem urbana entre a Avenida Treze de Maio e a Rua Senador Dantas, onde a movimentação de bondes era intensa. O centro da cidade tornara-se, àquela altura, prioritariamente comercial, um espaço de encontros e de atravessamentos entre todas as classes sociais.
Em paralelo, no bairro de Copacabana, outro crime contra homens poderosos acontece e, não sem resistência, mobiliza o Comissário Mattos.
Na madrugada do dia 5 de agosto de 1954, em frente ao Edifício Albervânia, número 180 da Rua Toneleiro, foi realizado um atentado contra a vida do jornalista Carlos Lacerda. Escrevendo, principalmente, para a Tribuna da Imprensa, ele era um dos mais ferozes críticos de Getúlio Vargas, mesmo antes da sua eleição a Presidente da República em 1950.
Mal sucedido, o encontro sinistro matou o major-aviador Rubem Florentino Vaz e acertou o pé de Lacerda. Esse acontecimento aprofundou irremediavelmente a crise política em curso, incriminou membros da Guarda Pessoal do presidente - Gregório Fortunado, Alcino João do Nascimento e Climério Euribes de Almeida - e culminou no suicídio de Getúlio Vargas.
O filme de longa-metragem "Getúlio", de 2014, dirigido por João Jardim, reconstrói as consequências indeléveis do atentado da Toneleiro.
“Iam desistir de esperar quando um carro parou na porta do edifício do jornalista, quarenta minutos depois da meia-noite. De dentro saltaram três pessoas. Lacerda, seu filho Sérgio, de quinze anos, e o major Vaz, da Aeronáutica.
‘É ele, você está vendo?’, disse Climério.
‘O de óculos?’
‘Claro que é o de óculos, porra! O outro é o milico capanga dele.’”
(Página 71)
Todas as mortes e artimanhas secretas de Agosto são como um ponto bem apertado em um bordado, que precisa ser desfeito pelo Comissário, fio a fio.
“Dentro do táxi de Nelson, que corria em alta velocidade pela avenida Copacabana, Alcino embrulhou o revólver e os seis cartuchos numa flanela amarela. Chegando no Flamengo, Alcino disse a Nelson para seguir pela Avenida Beira-Mar, pois tinha instruções de Climério para se livrar da arma jogando-a ao mar. Sua intenção era fazer isso sem sair do carro.”
(página 72)
No dia 12 de agosto, foram abertos um inquérito policial e um inquérito policial-militar, comandado da base aérea do aeroporto do Galeão. Neste momento, evidenciava-se o envolvimento direto dos militares na política nacional. À atuação independente da Aeronáutica durante as investigações se deu o nome popular de "República do Galeão".
Esse episódio foi aludido pelo ex-presidente Lula em uma conversa telefônica grampeada com a ex-presidenta Dilma Rousseff, na qual ele falou em “República de Curitiba” para se referir à força-tarefa da Lava Jato comandada pelo juiz Sérgio Moro. Tanto em 1954 como em 2016, as expressões tiveram ampla repercussão na imprensa e, de modo geral, na sociedade.
"‘Se você prefere podemos ir ao cinema São Luiz.’
‘Não quero botar paletó e gravata.’
‘Então vamos ao Polyteama. Naquele poeira não precisa usar paletó e gravata.’
‘Não gosto de cinema.’
‘Antes você gostava.’ Salete pegou o coldre com o revólver sobre a mesa da cabeceira. ‘O filme é O Diabo ri por último. Você anda com ele no corpo.’ Um sorriso indeciso.
‘Larga essa arma, por favor.’
‘Você sabe que adoro segurar seu revólver.’
‘Quer fazer o favor?’".
(Página 24)
O cinema São Luiz existe até hoje na Rua do Catete, número 311, no bairro do Catete. À época, era uma ostentosa casa de diversão com 3.000 lugares. O cinema foi inaugurado em 1937, depois do golpe do Estado Novo, que conferiu poderes ditatoriais a Getúlio Vargas até 1945. O fim do Estado Novo se deu por meio de golpe orquestrado por generais que compunham seu próprio governo. Outra conspiração militar, em 1954, retiraria Vargas definitivamente da vida política.
Não só o Comissário estava envolvido com duas mulheres, como elas também estavam cingidas, entre o charme incompreensível do investigador e homens da alta sociedade. Salete Rodrigues mantinha uma relação extraconjugal com o Deputado Luiz Magalhães.
“Em julho ela [Salete] poderia ter arranjado um emprego no Senado. Estava com Magalhães na boate Béguin assistindo a apresentação do cantor existencialista Serge Singer, quando Magalhães lhe dissera ‘vou meter você no trem da alegria do Senado’.”
(página 36)
A boate Béguin ficava no Hotel Glória, localizado na Rua da Glória, no bairro de mesmo nome. A Béguin era um dos pontos de encontro da elite carioca, em meados da década de 50, quando organizava sessões de jazz, o ritmo americano que ganhava mais e mais espaço no mercado fonográfico e radiofônico da época.
A pesquisadora Saraiva (2007:43) nos ajuda a vislumbrar o cenário a partir do que disse o crítico de jazz José Sanz, em 1954, a respeito de um evento na Béguin: "(...) na sala da 'boite', vimos a nata da sociedade fazendo esgares e soltando gritos agudos, enquanto no palco alguns jovens músicos, entre eles bons executantes, emitiam sons esdrúxulos que eram saboreados como ambrosia por aquela multidão de snobs, que acabava de descobrir um novo, 'chic' e dispendioso passatempo".
Salete Rodrigues havia fugido de casa aos 13 anos, trabalhado como babá em Copacabana e como prostituta na Avenida Mém de Sá, no bairro da Lapa, mas, como ela mesmo dizia, "subiu na vida".
“[Salete] Andou pelas ruas Gonçalves Dias, Ouvidor e Uruguaiana, olhando as vitrines. Entrou na loja de roupas A Moda e pediu para experimentar um vestido que viu na vitrine. [...]
A vendedora confessou que não agüentava mais trabalhar naquele lugar, que a gerente era uma megera. Salete disse que a vida dela também não era muito boa, ela gostava de um homem e vivia com outro, o que a salvava era ter dinheiro para comprar roupas. [...]
Se ela não andasse sempre elegante ainda estaria na casa de dona Floripes na rua Mem de Sá, perto da Cruz Vermelha, fodendo com bancários e comerciários.”
(página 37)
A Moda era uma elegante loja de vestuário feminino, localizada no Centro da cidade, na Rua Gonçalves Dias, número 18, esquina com a Rua Sete de Setembro. Os proprietários e as modistas traziam peças de viagens que faziam ao exterior. Embora a casa, fundada na primeira metade dos anos 1920, fosse conceituada, ela não era tão cara quanto outras casas de luxo, como era o caso da Casa Canadá, localizada na rua Rio Branco, esquina com Rua da Assembleia. Segundo a pesquisadora Lopes (2014:64), pelo estilo de roupa da cliente e pela idade dos sócios da loja que aparecem na fotografia, estima-se que ela seja dos anos 1940. A fachada do edifício onde ficava a loja continua preservada, graças ao tombamento do imóvel.
Salete melhorou de vida e sabia usufruir dos recursos que o capital econômico, cultural e social que a corrupção de um deputado lhe proporcionava, misturando uma sociabilidade popular a outra que adquiria conforme transitava em meios abastados.
“Por volta do meio-dia e meia [Salete] foi almoçar na [Confeitaria] Colombo (Rua Gonçalves Dias, 32). Magalhães disse que a Colombo não era mais freqüentada por gente fina, como antigamente, mas ela adorava entrar naquele salão de paredes altas cobertas de espelhos, emocionava-se com a pequena orquestra tocando valsas de Strauss. Só vira coisa bonita assim na Europa, quando viajara com Magalhães.
Foi ao cinema Palácio pegar a sessão das duas do filme O manto sagrado, com Victor Mature. Chorou durante a projeção.
Depois do cinema pegou um táxi e foi para o centro espírita. Entregou à mãe Ingrácia a cueca que apanhara na casa de Mattos, para a velha fazer o trabalho.”
(página 38)
“Quando chegou em seu apartamento, [Salete] ligou para Magalhães e disse que gostaria de ir a uma boate naquela noite. Salete queria ir ao Béguin, porém Magalhães disse que precisava encontrar alguém na Night and Day.
A boate [Night and Day] ficava na sobreloja do hotel Serrador, na Cinelândia, na esquina da rua Senador Dantas, entre os cinemas Odeon, à esquerda, e Palácio, à direita. Da janela envidraçada da boate podia-se ver o lado leste do Palácio Monroe, àquela hora deserto. Mais à direita, a mancha escura dos jardins do Passeio Público sobressaía por entre as luzes da fachada do cinema.”
(página 38)
Políticos, lobbistas, jornalistas e artistas circulavam e se hospedavam no Hotel Serrador. O expediente das casas legislativas no Palácio Monroe tinha continuidade no "american bar" da boate Night and Day - nome inspirado na canção de Cole Porter - ou ainda em alguma das 350 suítes do hotel. À época de sua inauguração, em 1944, foi considerado o maior hotel da América Latina, com 23 andares.
Policial Rosalvo para o comissário Mattos:
“‘Lomagno joga pólo no Itanhangá. Gente fina. Um jogador de pólo usa quatro cavalos puro-sangue durante o jogo.’ Pausa.
‘Uma coisa boa de ser polícia é que a gente vive aprendendo coisas.’
‘E o José Silva?’
‘Está difícil encontrar o menino,[...]’
Ele morava numa coisa na Avenida Atlântica. Fui lá e sabe o que descobri?”
(páginas 79-80)
Pedro Lomagno, educado em colégio católico de elite, empresário, jogador de pólo, casado com a ex-namorada do Comissário Mattos, Alice, e amante da viúva de Gomes Aguiar, Luciana Gomes Aguiar. Frequentava as boates do Centro da cidade, onde bebia uísque em meio a seus amigos políticos. No Clube Itanhangá, poderia, perfeitamente, ter topado com o presidente Getúlio Vargas, que também registrava presença por lá. Pessoalmente, estava bastante preocupado com a morte do oficial da Aeronáutica, no atentado na Toneleiros, e também com as ações da Cemtex, empresa do falecido amigo Gomes Aguiar.
“O primeiro a chegar no restaurante A Minhota, na rua São José, no centro da cidade, não muito distante da Câmara dos Deputados, foi Lomagno. Era quase uma da tarde. O restaurante, normalmente freqüentado por muitos senadores e deputados, estava vazio. [...]
‘Você está fugindo do assunto’, disse Claudio irritado [ao senador Vitor Freitas]. ‘Eu perguntei se você falaria com o presidente do Banco do Brasil. Você fala ou não?’ [...]
‘O atentado mudou tudo’, disse Freitas. ‘Os militares estão furiosos com a morte do major Vaz. Hoje será realizada uma assembléia no Clube da Aeronáutica, com objetivos nitidamente golpistas. Também hoje, nas duas casas do Congresso, serão proferidos discursos condenando o atentado. [...]
‘Ele não vai falar com o Souza Dantas. Deixa pra lá, Claudio’, disse Lomagno. Sua irritação parecia controlada.”
(páginas 91 e 96-97)
“Alice e Pedro Lomagno moravam num amplo palacete da avenida Oswaldo Cruz [anteriormente conhecida como Avenida Ligação], que fora do pai dele.[...]
Do outro lado da mesa, Alice via apenas a testa e os cabelos cuidadosamente penteados do marido. Lomagno dobrou e desdobrou o jornal várias vezes, enquanto tomava café, procurando as matérias que lhe interessavam, sem olhar uma só vez na direção da mulher. Quando terminou, levantou da mesa, apanhou a raquete de tênis.
‘Talvez tenha de fazer uma viagem ao exterior.’
‘Posso saber onde você vai?’
‘Europa.’
‘A Europa tem muitos países.’
‘França. Mais alguma pergunta?’
‘Você vai com aquela mulher?’
‘Que mulher?’
‘Você sabe muito bem.’”
(página 163)
“Luciana Gomes Aguiar esperava por Lomagno no Country Club, em Ipanema, sentada a uma das mesas em volta da piscina, vestida para jogar tênis. Luciana estava ansiosa, pois eles haviam combinado que ficariam sem se ver alguns dias, depois da morte de Gomes Aguiar, e apenas haviam se falado pelo telefone.”
(página 165)
Localizado em Ipanema, à Rua Prudente de Morais número 1.597, o “Rio de Janeiro Country Club” é inspirado nas agremiações de cavaleiros da aristocracia na Inglaterra. O clube foi fundado em 1916 por um grupo de ingleses e americanos, em grande parte funcionários da Light e da Botanical Gardens, quando o bairro tinha ainda pouca infraestrutura. Seu terreno é limitado pela Avenida Vieira Souto e pelas ruas Prudente de Morais e Henrique Dumont. Para poder comprar um título de sócio do clube, o pretendente ou a pretendente passa por um processo de seleção rigoroso e, após aceite, poderá desembolsar suas centenas de milhares de reais para se tornar membro do clube privado mais exclusivo do Rio de Janeiro.
“‘Procura o Teodoro, da segurança do Senado. Ele está querendo arranjar um emprego para a mulher dele. Pode prometer. Diz ao Teodoro para apurar quem é esse tira e o que ele quer comigo. Ficha completa. A gente não deve deixar nada no ar.’
Os dois entraram juntos no Senado. Clemente foi procurar Teodoro. Vitor Freitas, no seu gabinete, deu os últimos retoques no discurso que faria condenando o atentado da rua Tonelero.”
(página 98)
O Palácio Monroe ocupou o terreno onde hoje está a Praça Mahatma Gandhi, próximo à Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro. Foi projetado para ser o Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 1904, ocorrida em Saint Louis, nos Estados Unidos. Foi de lá trazido para o Brasil e remontado em 1906, quando serviu de sede para a Terceira Conferência Pan-Americana. Esse evento marcou a mudança de nome do edifício de Saint-Louis para Palácio Monroe. A sugestão foi feita ao Barão do Rio Branco por Joaquim Nabuco, em homenagem ao presidente norte-americano James Monroe, referência do Pan-Americanismo. Lá foi abrigado o Senado Federal entre 1925 e 1960. Símbolo da Belle Époque brasileira, o monumento foi demolido em 1976.
“Teodoro telefonou para o senador Vitor Freitas.
‘O senhor falou para eu ligar para a sua casa se tivesse alguma informação importante e urgente.’
‘Estou ouvindo.’
‘Não acho bom falar pelo telefone.’
‘Passe aqui em casa. Praia do Flamengo 88, esquina de Ferreira Viana. Edifício Seabra.’
Teodoro sabia onde ficava o edifício Seabra, um dos prédios residenciais mais conhecidos da cidade. Um dos sonhos de Teodoro era morar naquele prédio de granito negro. O mundo é engraçado, ele pensou.”
(página 143)
O Edifício Seabra foi inaugurado em 1931, sendo um dos primeiros edifícios residenciais da cidade. Seu estilo baseia-se na Primeira Renascença italiana, com forte influência de elementos toscanos, e surpreendeu a sociedade carioca dos anos 1930, tornando-se um marco arquitetônio na Praia do Flamengo, número 88.
O projeto do arquiteto italiano Mario Vodret foi encomendado pelo bem-sucedido industrial do ramo têxtil, o comendador português Gervásio dos Santos Seabra, e atendeu o desejo de sua esposa Assunta Grimaldi Seabra. O interior do edifício é rico em detalhes ainda mais impressionante que a sua fachada, incluindo aplicações em ouro.
“Numa casa da rua Oliveira da Silva, uma pequena rua perto da praça Xavier de Brito, na Tijuca, um comitê integrado pelo coronel Alberico, do Exército, coronel Arruda, da Aeronáutica, e o capitão de mar-e-guerra Osório, se reunia naquela manhã para fazer uma avaliação do trabalho que denominavam ‘a missão’. Os três militares eram muito conhecidos e respeitados pelos seus colegas de farda, tanto subordinados quanto superiores, razão pela qual haviam sido escolhidos para integrar aquela comissão informal, cujo objetivo era visitar unidades militares para evidenciar à tropa a falência do governo e promover e instigar o repúdio a Vargas. A morte do major Vaz era o carro-chefe dos ‘missionários’, a principal acusação do comitê.”
(páginas 224-225)
A Praça Comendador Xavier de Brito é a famosa “Praça dos Cavalinhos”, localizada na Tijuca, na Zona Norte - um bairro tradicional da cidade, de passado aristocrático e onde se localiza o Colégio Militar. Na foto dos anos 1930, a praça ainda não tinha seu famoso chafariz. Ao fundo, a Escola Soares Pereira, inaugurada em 1926 e ainda em atividade.
“A partir das duas e meia da tarde começaram a chegar ao edifício do Ministério da Guerra, ao lado da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, os carros pretos conduzindo os alto chefes do Exército e a oficialidade superior da guarnição do Rio de Janeiro, tendo à frente o general Odilio Denys, comandante da Zona Militar Leste. Eles demonstrariam ao general Zenóbio a solidariedade e a confiança dos seus camaradas pela sua decisiva atuação em manter elevado o prestígio do Exército e da nação. Respondendo à saudação do general Denys, o general Zenóbio disse: ‘Camaradas! Confiem em mim, como eu confio em vocês!’”.
(página 259)
“Passava da meia-noite quando chegaram ao Catete. Os filhos e demais parentes do presidente estavam no palácio. Vargas recebeu Mascarenhas e Zenóbio na presença do ministro Oswaldo Aranha. Ouviu, em silêncio, Zenóbio lhe dizer que ele, presidente, perdera o apoio militar.
‘Amanhã convocarei uma reunião do Ministério’, disse Vargas.
Mascarenhas propôs que a convocação fosse imediata, o que foi aceito pelo presidente.”
(páginas 317-318)
Um anotação da filha de Getúlio Vargas, Alzira do Amaral Peixoto, feita durante a reunião ministerial de 23/08/1954, registra a decisão de Vargas de se licenciar da presidência da República como solução para a crise política.
A filha Alzira fora uma personagem de grande relevo na vida de Getúlio Vargas, articulando alianças políticas e intermediando questões familiares e pessoais. Ela exerceu papel fundamental na crise político-militar de 1954, que culminou no suicídio do pai. Ela foi casada com Ernâni do Amaral Peixoto, interventor federal e depois governador do estado do Rio de Janeiro. Os arquivos pessoais de Getúlio Vargas, de Alzira do Amaral Peixoto e de Ernâni do Amaral Peixoto estão depositados no acervo histórico da FGV CPDOC e disponíveis para consulta online.
O livro "Volta ao Poder – A correspondência entre Getulio Vargas e a filha Alzira (1946-1950)" contém, em dois volumes, um conjunto de 568 cartas inéditas trocadas entre os dois entre 1946 e 1950 que abordam questões pessoais, lutas partidárias e comentários sobre aliados e inimigos políticos. O livro também traz ricas imagens e um texto inédito do crítico literário e sociólogo Antonio Candido.
“Sozinho no seu quarto, Vargas, lentamente, tirou a roupa e apanhou o pijama de listas sob o travesseiro. [...]
Faria o que tinha que ser feito. Desafronta e redenção. Uma sensação eufórica de orgulho e dignidade tomou conta dele. Sim, sua filha agora o perdoaria.
Apanhou o revólver na gaveta da cômoda e deitou-se na cama. Encostou o cano do revólver no lado esquerdo do peito e apertou o gatilho.”
(páginas 323 e 325)
A Carta-Testamento de 1954 foi deixada por Getúlio Vargas em cima de uma mesinha-de-cabeceira do quarto presidencial no terceiro andar do Palácio do Catete. Quem reportou tê-la encontrado foi Ernâni do Amaral Peixoto, governador do estado do Rio de Janeiro e genro do presidente, por casamento com Alzira Vargas.
Na carta, Getúlio se dirigiu ao povo brasileiro e falou de uma campanha obscura orquestrada contra ele por grupos nacionais e internacionais que tinham como objetivo conter a consolidação e ampliação de um regime de proteção social aos mais pobres e de fortalecimento de uma soberania nacional.
Ao fim da famosa carta, Getúlio marca a história política nacional com a frase “Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”
Fato não tão conhecido é o de que esta não é a única carta de suicídio presente no arquivo pessoal de Getúlio Vargas, depositado na FGV CPDOC.
Vargas havia preparado-se para essa tragédia em pelo menos dois outros momentos críticos da história nacional: a Revolução Constitucionalista de 1932 e a sua deposição pelas Forças Armadas em 1945, quando se pôs fim à ditadura do Estado Novo. Acima, fotografias da primeira página das cartas rascunhadas em 1932 e em 1945.
Todas as cartas de despedida de Getúlio Vargas, que por mais de vinte anos contemplou a possibilidade de um suicídio, além do seu diário pessoal e de milhares de documentos por ele guardados podem ser consultados em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo. A Casa Acervo CPDOC fica localizada na antiga Rua Dona Anna, hoje Rua Jornalista Orlando Dantas, nº 60, Botafogo, Rio de Janeiro. A Casa Acervo era a casa de Dona Anna
“O comissário chegou ao distrito e Pádua lhe disse:
‘O Getúlio se matou. O Vilanova, do GEP, acabou de ir para o Palácio do Catete para fazer o exame pericial. O Jessé de Paixa e o Nilton Salles vão fazer a autópsia. Ordens diretas do chefe de polícia.’
‘Eu vou ao Catete’, disse Mattos.
Ele tinha que ver o corpo morto de Getúlio. [...]
Mattos saiu do palácio. Abriu caminho por entre a multidão aglomerada em frente ao palácio. Precisava voltar para o distrito.”
(páginas 326 e 330)
“‘Os milicos são muito burros. Aí é que está o busílis. Se deixassem Getúlio em paz o velho gagá ia morrer escrachado, sendo penteado em público pelo Anjo Negro, afogado no mar de lama. Mas os milicos apertaram ele na parede, sem dar a ele uma chance de livrar a cara. Fizeram o jogo do Lacerda, que é um maníaco que não sabe onde parar. O povo já tinha tirado novamente o retrato do velho da parede, agora vai começar tudo de novo, o velho virou santo, como todo político que morre no governo, neste país de merda.’
‘Você não era lacerdista? Contra o Getúlio?’
‘Virei a casaca.’
Rosalvo começou a cantar uma música de carnaval de 1951: ‘Bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar”.
(página 331)
Obrigada por acompanharem essa leitura espacial e imagética de Agosto, de Rubem Fonseca! História e tempo presente se entremeiam de formas assombrosas e interessantes, na literatura, no cinema, pelas ruas da cidade, por meio da tecnologia digital ou da pesquisa em arquivo. Que esta Narrativa do Rio sirva para aguçar a sua imaginação.