A vida do estudante Josino no Rio de Janeiro do séc. XIX. Interpretação da obra "Uma por Outra" Machado de Assis - 1897

Author: Verena Andreatta

A partir do conto "Uma por Outra" de Machado de Assis, de 1987, explicam-se em fragmentos do própio texto, os movimentos do personagem Josino e os percursos realizados na cidade. Um mapa com os itinerários de Josino ajuda a contextualizar a ambiência de cada lugar visitado. 

Este trabalho contou com a colaboração do grupo de pesquisa do LAURD/PROURB e com o apoio técnico de Nina Andreatta.

Breve Resumo do Conto

Machado de Assis assume como narrador o personagem de um tabelião chamado Josino, que vive no Crato, município do Ceará. É casado com uma senhora desta cidade e tem dois filhos. O conto se desenvolve a partir das memórias do Josino “jovem e com poucas ambições” na sua plácida vida de estudante de matemáticas no Rio de Janeiro. 

Morava num sótão na Rua da Misericórdia que tinha vista para o Morro do Castelo. Era dado à leitura de romances aristocráticos e a escrever poesias. Sua mente enamoradiça desenvolve encontros platônicos. O primeiro, ao olhar uma moça no teatro Lírico. Em seguida seu olhar se volta para uma moça que vivia numa das casas trepadas no Morro, contando sobre o pouco usual “namoro de telhados”. E por último vive um namoro frustrado com a filha de um comerciante de borracha, Estela, que conheceu no vapor quando voltava do Ceará, passando a frequentar a casa dela e intercambiar versos e prosa. A ida da família para São Paulo afasta-os definitivamente, e sente-se frustrado ao saber que Estela se casara em Sorocaba. 

Josino descreve os sentimentos de tristeza e vexação, mas parece finalmente estoico, assumindo “trocar mulheres possíveis e perdendo-as sucessivamente” até casar-se ao voltar para sua cidade natal.

Era por volta de 1867 no Rio de Janeiro

"Era por sessenta e tantos....Musa, lembra-me as causas desta paixão romântica, contas as suas fases e o seu desfecho. Não fales em verso, posto que nesse tempo escrevi muitos. Não; a prosa basta, desataviada, sem céus azuis nem garças brancas, a prosa do tabelião que sou neste município do Ceará".

Panorama do Centro do Rio de Janeiro a partir do Morro do Castelo, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1885
Vida de Estudante na Rua de Misericórdia

"Tinha eu vinte anos feitos e mal feitos, sem alegrias, longe dos meus, no pobre sótão de estudante à Rua da Misericórdia. Certamente vida de estudante de matemáticas era alegre, e as minhas ambições , depois do café e do cigarro, não iam além de um e outro teatro, mas foi isto mesmo que me deitou “uma gota amarga na existência”. 

Teatro Lírico, próximo da atual rua 13 de Maio - História das Ruas do Rio, B. Gerson, Lacerda Ed.
Teatro Lírico

"Foi no teatro que eu vi aquela criaturinha bela e rica, toda sedas e jóias, com o braço pousado na borda do camarote, e o binóculo na mao. Eu, das galerias onde estava, dei com a pequena e gostei do gesto. No fim do primeiro ato, quando se levantou, gostei da figura. E daí em diante até o fim do espetáculo, nao tive olhos para mais ninguém, nem par mais nada: todo eu era ela".

Planta do Teatro Lírico. Rio de Janeiro, Uma Viagem no Tempo - Fernando da França Leite, 2000.
Camarote do Teatro Lírico

"Acabava de ler um dos romances aristocráticos de Feuillet, exemplar comprado por um cruzado em não sei que belchior de livros. Foi nesse estado de alma que descobri aquela moça do quinto camarote, primeira ordem, à esquerda, teatro lírico."

Panorama do centro do Rio de Janeiro a partir do Morro do Castelo, Ferrez, Marc, Instituto Moreira Salles, 1880
Telhados entre a Misericórdia e o Castelo

"O meu sótão dava para o morro do Castelo. Numa daquelas casas trepadas no morro, desordenadamente, vi um vulto de mulher, mas só adivinhei que o era pelo vestido. Cá de longe, e um pouco de baixo, não podia distinguir as feições. Estava afeito a ver mulheres nas outras casas do morro, como nos telhados da Rua da Misericórdia, onde algumas vinham estender as roupas que levavam". 

Rua do Ouvidor, Ferrez, Marc, Instituto Moreira Salles, 1885
Rua do Ouvidor e Bairros Elegantes

"– Quem é aquela moça ? perguntei a um deles, à saída do saguão.

- Não sei. Ninguém me disse nada, não a encontrei mais, nem na Rua do do Ouvidor, nem nos bairros elegantes por onde me meti, à espera do acaso".

Vista de Josino para o Morro do Castelo, Litza Passos, LAURD/PROURB, 2021
A Janela para o Morro

"Na manhã seguinte, quando abri a janela, já achei na outra a figura da véspera. Esperava-me decerto; a atitude era a mesma, e, sem poder jurar que lhe vi algum movimento de longe creio que fez algum. Era natural fazê-lo, caso me esperasse. No terceiro dia cumprimentei-a cá de baixo; não respondeu ao gesto e pouco depois entrou. Não tardou que voltasse, com os e mesmos olhos, se os tinha, que eu não podia ver nada, estirados para mim. Estas preliminares duraram cerca de duas semanas".

O Vapor da linha de Liverpool, George Leuzinger, Coleção do MAM - RJ; Fotógrafos Pioneiros no Rio de Janeiro, Pedro Vázquez, Editora Dazibao, 1865
A vida é poesia

"Então eu fiz uma reflexão filosófica, acerca das diferenças de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa graduação dos homens, fazendo com que a outra moça, rica e elegante, de alta classe, não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem tirar dela os olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi a primeira que me viu e me chamou atenção. É assim mesmo, pensei eu; a sorte destina-me esta outra criatura a que não terá de subir nem descer para que as nossas vidas se entrelacem e nos dêem a felicidade que merecemos. Isto me deu uma idéia de versos. Lancei-me à velha mesa de pinho, e compus o meu Recitativo das Ondas: “A vida é onda dividida em duas”.

Rua dos Arcos, Augusto Malta, Instituto Moreira Salles, 1903
Visita a uma familia na Rua dos Arcos

"Oh! Quantas vezes disse eu este recitativo aos rapazes da Escola e a uma família da Rua dos Arcos! Não frequentava outras casas; a família compunha-se de um casal e de uma tia que também fazia versos

Também ela gostava dos meus, e os do recitativo dizia-os sublimes. Sentava-se ao piano um pouco desafinado, logo que eu entrava lá e, voltada para mim:

- Sr. Josino, vamos ao recitativo.

E eu: - A vida é onda dividida em duas...

-Delicioso! Exclamava ela no fim, entornando os olhos murchos e cobiçosos".

Litografia de Melton Prior, The Ilustrator London News, Alberto Cohen. Rua da Carioca. Page28, 1893
O autor da poesia

"Sei que foi recitado em várias casas, e ainda agora me lembro que, um dia passando pela Rua do Ouvidor, ouvi a uma senhora dizer a outra: “Lá vai o autor das Ondas”".

Namoros de Telhados

"Os namoros dos telhados são pouco sabidos das pessoas que só tem namorado nas ruas; é por isso que não tem igual fama. Mais gracioso são, e romanescos também. Eu já estava acostumado a eles. Tivera muitos, de sótão a sótão, e mais próximos do outro. Víamo-nos os dois, ela estendendo as roupas molhadas da lavagem, eu a folhear os meus compêndios. Risos de cá e de lá, depois rumo diverso, um pai ou mãe descobria a troca de sinais e mandava fechar as janelas, uma doença, um arrufo e tudo acabava".

Panorama do Rio de Janeiro tomado do Morro do Castelo, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1880
O olhar para o mar ou sótão?

"Eu, depois dos primeiros tempos, temi que houvesse engano da minha parte, isto é, que a moça olhasse para outro sótão, ou simplesmente para o mar. O mar não digo: não prenderia tanto, mas a primeira hipótese era possível. A coincidência, porém dos gestos e das atitudes, a espécie de respostas dadas à espécie de perguntas que eu lhe fazia, trouxeram-me a convicção de que realmente éramos nós dois os namorados".

Rua Primeiro de Março, à direita, o prédio da Bolsa de Fundos Públicos (ou Bolsa de Valores), atual Centro Cultural Banco do Brasil, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1885
Confidencias no Café Carceler

"Um colega da Escola, por esse tempo meu camarada íntimo, foi o confidente daquele mistério.

- Josino, disse-me ele, e por que é que não vais ao morro do Castelo?

- Não sei onde fica a casa.

- Ora essa! Marca bem a posição cá de baixo, vê as que lhe ficam ao pé e sobe; se não estiver na ladeira, há de estar no alto em algum lugar (...)

- Já pensei nisso, respondi dali a um instante, mas confesso-te que não quis tentar nada (....) o melhor deste meu namoro é o mistério.Deitei fora o cigarro, apenas começado (estávamos no café Carceler), e dei um murro no mármore da mesa; acudiu o criado a perguntar o que queríamos, respondi-lhe que fosse bugiar, e após alguns instantes declarei ao meu colega que não pensava matar tempo.

- Francamente Josino, fala sério, não me respondas com chalaças. Tu estás deveras apaixonado por essa moça? -Estou. -Essa moça, quero dizer, esse vulto, porque tu não sabes se é moça ou velha.

- Isso vi; a figura é de moça".

Largo do Paço, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1875
Tilburi na Rua Direita

"Crê, Fernandes; esta moça é bela; é bel, pobre, e está doida por mim; eis o que eu te posso afirmar, tão certo como aquele tílburi estar ali parado. - Que tílburi, Josino? Perguntou-me ele depois de puxar uma fumaça ao cigarro. Aquilo é uma laranjeira. Parece tílburi por causa do cavalo, mas todas as laranjeiras tem um cavalo, algumas dois; é a matéria do nosso segundo ano. Tu mesmo és um cavalo pegado a uma laranjeira, como eu; estamos ambos a pé de um muro, que é o muro de Tróia, Tróia é dos troianos, e a tua dama naturalmente cose para fora".

Arquivo Nacional
A procura da casa do Morro do Castelo

"Este Fernandes era o chalaceiro da Escola...no dia seguinte foi visitar-me no sótão. Queria ver a casa do Morro do Castelo. (...) A vista do meu colega não dava para descobrir de baixo e de longe as feições da minha namorada. (...) Quanto a casa, estava marcada; iria rondar por ela, até descobrir a pessoa.  E porque não comprava um binóculo? Perguntou-me. Achei-lhe razão. (...) Era melhor não conhecer a moça completamente.  Fernandes riu-se e despediu-se".

 
Subida no Morro do Castelo - Beco do Cotovelo, Litza Passos, LAURD/PROURB, 2021
A casa fechada

"Um dia, ao abrir a janela, não vi a namorada. (...) Fiquei arrependido de não a ter buscado no morro; haver-lhe-ia escrito, saberia quem era e para onde fora, ou se estava doente. Esta última hipótese sugeriu-me a ideia de ir ao morro procurar a casa. Fui; ao cabo de algum tempo e trabalho dei com a casa fechada. Os vizinhos disseram-me que a família saíra para um dos arrabaldes, não sabiam qual deles.

- Está certo que é a família Vieira ? perguntei eu cheio de maquiavelismo.

_ Vieira? Não senhor; é a família Maia, um Pedro Maia, homem do comércio.

- Isso mesmo; tem loja na Rua de São Pedro, ou Sabão". 

 
Sinais de lenço e vela

"A situação não mudou. Mostras de contemplações de longe. Cheguei ao sinal de lenço e ela também. De longe, tinha vela acesa até tarde; ela se não ia até à mesma hora, chegava às dez, uma noite apagou a vela às onze. (...) As noites não foram assim seguidas, desde princípio; tinha hábitos noturnos, passeios, teatros, palestras ou cafés que eram grande parte da minha vida de estudante; não mudei logo. Mas ao cabo de um mês, entrei a ficar todas as noites em casa.  (...) O resto do tempo era dado às musas. (...) uma das composições foi dedicada à misteriosa moça do Castelo. (...) Chamei-lhe Pia".

Provincia do Brazil, Cândido Mendes, Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Phitomathico, 1868
Férias na Província do Ceará

"Entramos de férias. A minha idéia era não ir à província, ficar por qualquer pretexto e esperar a volta da minha diva. Não contava com a fatalidade. Perdi minha mãe; recebi carta do meu pai, dizendo estar à minha espera. (...) Embarquei e fui para a província. Meu pai achou-me forte e belo, disse que tinha boas notícias minhas, tanto de rapaz como estudante, dadas pelo correspondente e outras pessoas.

Dois dias depois, declarou-me ele que estava disposto a fazer-me trocar de carreira. (...) “era melhor bacharelar-me em direito; todos os seus conhecidos mandavam os filhos para Recife. A advocacia e a magistratura eram bonitas carreiras, não contando que a câmara dos deputados e o senado estavam cheios de juristas. Todos os presidentes de províncias não eram outra coisa. Era muito mais certo, brilhante e lucrativo”. Eu rejeitei...desdenhei a jurisprudência, e nisto era sincero; as matemáticas e a engenharia faziam-me seriamente crer que o estudo e a prática das leis eram ocupações ocas. Para mim a linha mais curta entre os dois pontos valia mais que qualquer axioma jurídico. (...)

Sobretudo havia em mim, relativamente à moça do Castelo, uma aventura particular. Não queria morrer sem conhece-la. O fato de ter deixado o Rio sem te-la visto de perto, cara a cara, pareceu-me fantástico".

Mas é preciso alguma nobreza de estilo em um namorado daqueles tempos, e namorado poeta, e poeta cativo de uma sombra. Meu pai, depois de teimar algum tempo no Recife, abriu mão da ideia e consentiu em que eu continuasse as matemáticas. Como me mostrasse ansioso por tornar à Corte, desconfiou que andassem comigo alguns amores espúrios, e falou da corrupção carioca.

 - A Corte sempre foi um poço de perdição; ali perdi um tio....

O que lhe confirmou esta suspeita foi o fato de haver ficado por minha conta o sótão da Rua da Misericórdia. (...)

(...) Meu pai, escreva ao Sr. Duarte, e ele dirá se o sótão não está fechado à minha espera.  Não há muitos sótãos vagos no Rio de Janeiro; quero dizer um lugar que sirva, porque não hei de ir fora da cidade, e um estudante deve estar perto da Escola."

Vista do Cais Pharoux, Morro do Castelo ao fundo, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1885
De Volta para a Corte

"Parti para a corte alguns dias antes do prazo. Não esqueço dizer que, durante as férias, compus e mandei publicar na imprensa fluminense várias poesias datadas da província. Eram dedicadas “à moça do Castelo” e algumas falavam de janelas cerradas. (...)

Encontrei a bordo um homem que vinha do Pará, e a quem meu pai me apresentou e recomendou. Era negociante do Rio de Janeiro; trazia mulher e filha....gostou de mim, como se gosta a bordo, sem mais cerimonia, e viemos conversando por ali afora. Tinha parentes em Belém, e era associado com um negócio de borracha. Contou-me coisas infinitas da borracha e do seu futuro. (...)

- Gostas de versos? A minha Estela gosta, e desconfio até que é poetisa. 

- Também faço o meu versinho de pé quebrado, disse eu com modéstia. (...)

No porto de Recife, vi Estela e a mãe, e daí até o Rio de Janeiro, pude conversar com elas. (...) Os olhos eram cor do mar. Esta circunstancia fez-me escrever um soneto que lhe ofereci, e que ela ouviu com muito prazer, entre a mãe e o pai. O soneto dizia que os olhos, como as vagas do mar, encobriam o movimento de uma alma grande e misteriosa. (...) ela fez-me o favor de achar parecidos como os de Gonçalves Dias, o que era pura exageração. No dia seguinte disse-lhe o meu Recitativo das Ondas. “ A vida é onda dividida em duas...” Achou-o muito bonito. (...)

Chegamos. O pai ofereceu-me a casa; eu dei-lhe o número da minha, explicando que era um sótão de estudante.

- Os pássaros também moram alto, disse Estela.

Sorri, agradeci, apertei-lhe a mão, e corri para a Rua da Misericórdia.

A moça do Castelo chamava-me".

Entrada da baía e adjacências, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1885
Baía de Guanabara

"Durante três ou quatro, cinco dias, não me apareceu o vulto do Castelo.- Mudou-se, é o que é. (...)Já então visitara o negociante. A filha deu-me o álbum para escrever o Recitativo das Ondas, e mostrou-me duas poesias e que fizera depois de chegar: Guanabara e Minhas flores. (...)- Parece-me que o senhor gosta mais da Guanabara....(...) escolhi Minhas Flores...E pode ser que fosse assim mesmo; Guanabara era uma reminiscência de Gonçalves Dias.(...)- Quer dizer que a minha linguagem não presta para nada?

- Que idéia, minha Estela! - E acho que tem razão: não presta.

(...) Como estávamos a sós, ajoelhei-me e jurei pelo céu e a terra, pelos olhos dela, por tudo que pudesse haver de mais sagrado que não pensava assim. Estela perdoou-me e começou a cópia dos versos".

Rua do Senado

"Nisso estávamos, eu ia pouco à Escola, e via raras vezes o Fernandes; este um dia levou-me a um café, e disse-me que ia casar. (...) Pois também eu caso-me, disse-lhe daí a alguns segundos.(...)

Que singular caso ! exclamou o Fernandes. Sabes tu com quem me caso? Com a moça do Castelo.

Explicou-me tudo. Sabendo que a noiva morava no Castelo, falou-lhe de mim e do namora; ela negou, mas ele insistiu tanto que Margarida acabou confessando e rindo muito do caso.

- Sabes que não sou de ciúmes retrospectivos. Queres tu vê-la? Agora que vocês dois estão para casar, e nunca se conheceram, há de ser curioso verem-se e conhecerem-se; eu direi a Margarida que és tu,mas que tu não sabes; tu ficas sabendo que é ela e que ela não sabe.

Poucos dias depois, Fernandes levou-me à casa da noiva. Era na Rua do Senado, uma família de poucos meios, pai, mãe, duas filhas, uma de onze anos.  Margarida me recebeu com afabilidade; estimava muito conhecer um amigo e colega do noivo, e tão distinto como lhe ouvira dizer muitas vezes. (...)

Realmente, era uma bela criatura. Ao vê-la recordei os nossos gestos de janela a janela. (...) Saí de lá com recordações do passado. A vista da rua e do presente, e sobretudo a imagem de Estela desfizeram aqueles fumos.

(...) Há encontros curiosos. Enquanto eu conversava com Margarida , e evocava dias de outrora, Estela compunha versos, que me mostrou no dia seguinte, com este título: Que é o passado?.(...)

A poesia dava a minha namorada um toque particular. Quando eu estava com o Fernandes dizia-lhe isso, ele dizia-me outras coisas de Margarida, e assim trocávamos as nossas sensações de felicidade. Um dia comunicou-me que ia casar dali a três meses".

 

Igreja do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, Brasil Gerson. Historia das ruas do Rio. Editora Lacerda.
Igreja do Sacramento

"Casaram-se no dito prazo. Lá estive na Igreja do Sacramento. Ainda agora penso como é que pude assistir ao casamento da moça do Castelo.

- Então, a noiva estava bonita? Perguntou-me Estela no dia seguinte.

- Estava.

- Muito ?

- Menos que você quando cingir o mesmo véu".

 

Igreja São Francisco de Paula, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1880
Outro casamento, outra igreja

"Sonhei com ela (Estela) e no dia seguinte levei-lhe a cópia (de versos)

Encontrei-a em caminho, com algumas amigas, iam ver um grande casamento. Acompanhei-as; à porta da igreja estavam ricas carruagens, cavalos magníficos, librés de bom gosto, povo à porta, povo dentro. (...) Compreendi o gosto das moças em ver casamentos alheios (...) O que ninguém ali teve, creio e juro, foi a impressão que recebi quando dei com os olhos na noiva; era nada menos que a moça do teatro, a quem eu dera o nome de Sílvia, por lhe não saber outro. Só uma vez a vira, mas as feições não se apagaram da memória apesar de Margarida e Estela. (...)

Em casa disse-lhe que pensava no dia em que fossemos objeto da curiosidade pública, e a nossa felicidade se consumasse assim.

- Não tardará muito, acrescentei, uma vez formado.

Os olhos dela confirmaram este acordo, e a musa o fez por versos que foram dos mais belos que li da minha poesia".

Embarque de Estela para Santos...

"Íamos passando o tempo, sem grave incidente, quando uma tarde o pai de Estela entrou em casa, anunciando a mulher e à filha que tinha que ir para São Paulo. (...)

- Vamos todos, Guimarães, havemos de ir todos a São Paulo.

- Sim podíamos ir...mas é que é por tão pouco tempo...Valerá a pena, Feliciana? Mas, vamos, se queres, os vapores são pouco cômodos. (...)

Embarcaram para Santos. Fui despedir-me a bordo, e ao voltar para o meu sótão, comecei logo a escrever a primeira carta; no dia seguinte, remeti-a. Três dias depois tive a primeira carta de Esteva, uma breve e triste carta que falava mais do mar do que de mim, mais de si que do mar e mais da poesia que de nenhum dos três. (...) Passados dois meses, contei-lhe as minhas saudades. Não me respondeu; escrevi-lhe outra; recebi um bilhete em que contava um baile do presidente da província, descrição amorosa, as valsas, as quadrilhas, e no fim uns versos que compôs na seguinte manhã, com o pedido e os fazer imprimir em alguma folha, “e um pequeno juízo”.

 - Não me ama ! bradei desesperadamente".

Rua da Quitanda, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1885
O Correio Mercantil

"E fui por aí adiante, com tal desvaria, que falava às paredes, aos ares... As paredes ficaram surdas, os ares apenas repercutiam as minhas vozes. Entretanto, copiei os versos, pus-lhes algumas palavras de louvor, e levei-os ao Correio Mercantil. Escasseando as cartas resolvi ir a São Paulo; mas então o pai escreveu-me dizendo que iriam a Sorocaba e outros lugares, e só daí a dois ou três meses poderiam estar de volta. Estela escreveu-me um bilhetinho de três linhas, com um soneto para o Correio Mercantil.

Na casa comercial do pai é que me iam informando do itinerário da família, pelas cartas que recebiam dele.

Um dia anunciaram-me ali que o Guimarães vinha à Corte, mas só.

(...) Corri a vê-lo, recebeu-me com polidez, mas frio e triste, vexado, penalizado. Não me disse nada nos primeiros dias, mas uma notícia grave e um acontecimento certo e próximo não são coisas que se guardem por muito tempo: Estela ia casar. Casava em Sorocaba...Não ouvi o resto...."

Santa Casa de Misericórdia, Marc Ferrez, Instituto Moreira Salles, 1875
De volta pra casa...

"A noite, o mar, as ruas, é que ouviram as minhas imprecações e lamentações não sei quanto tempo. Assim pois, uma por outra, vim trocando as mulheres possíveis e perdendo-as sucessivamente. Aquela com que afinal me casei é que não substituiu nenhuma Silvia, Margarida ou Estela; é uma senhora do Crato, meiga e amiga, robusta apesar de magra, mãe de dois filhos que vou mandar para o Recife, um dia destes".

Desenho Litza Passos, LAURD/PROURB /Mapa M.kinney, 1838
Mapa Topológico com os percursos do Josino

Este mapa mostra o provável local do sótão onde morava Josino, na Rua da Misericórdia, e os percursos realizados para ir ao teatro, igreja, ruas, porto, etc.

 

Observações

O trabalho aqui desenvolvido foi realizado mediante o recorte de partes do texto original (fragmentos), logo alinhavados por meio de um fio condutor que pontuou os locais para onde o personagem principal se deslocava. Desta forma foi possível identificá-los no mapa da cidade do Rio de Janeiro do século XIX bem como os percursos realizados neste deslocamento.

Portanto, é justo defender a ideia de que o leitor não perca a riqueza do conto original  que se encontra publicado em diversas edições.

Para os interessados na obra de Machado de Assis vale a pena conhecer o trabalho da Casa Fundaçao de Rui Barbosa, ver link: www.machadodeassis.net

 

Créditos e Agradecimentos

Agradecimentos a equipe do LAURD – UFRJ:

Rodrigo Cury Paraíso e Maria Cristina Cabral pelo estímulo e troca de ideias sobre o "Guia Literário do Rio de Janeiro".

Agradeço a Naylor Vilas Boas pela  participação direta neste trabalho e a curadoria sobre as imagens do Morro do Castelo, bem como disponibilizar o trabalho de: 

 - Litza Passos e Ana Clara Santos (Perspectivas/desenhos em meio digital )

Agradeço a Cintia Melcher pela atitude colaborativa em estabelecer conexões para o desenvolvimento desta narrativa.